Pelas ruas de Kathmandu

Kathmandu

Uma pracinha no bairro do Thamel… Ao lado esquerdo da foto, uma stupa budista. (Foto: Paula Valenzuela)

Croissants….
Se alguém me perguntasse qual foi o ponto alto das minhas experiências gastronômicas no Nepal, os croissants seriam um bom primeiro palpite.
E ali, naquele meu primeiro café da manhã, procurando entre as diversas opções de pratos expostos qual seria a mais “segura”, me deparei com os benditos croissants. E com algumas frutas, inclusive lichia sem caroço. Lichia sem caroço, aliás, poderia ser um outro bom palpite sobre o ponto alto gastronômico…

Achei que o combo frutas com croissant estava de bom tamanho e seria seguro o suficiente para fugir das opções indianas que haviam do menu. Como não tenho hábito de comer coisas apimentadas, estava com um certo receito de tentar os pratos de cor radioativa que me encaravam de cima do balcão de comidas.

Não sei se pelo fuso ‘confuso’, mas eu havia acordado faminta. Descansada, mas faminta. Juntando a fome com o croissant maravilhoso do hotel, acabei perdendo a linha e comendo uns cinco deles (e eu acabei me auto-apelidando de “a maníaca do croissant”). Não foi de todo ruim, dado que o dia ali prometia longas caminhadas: iríamos na parte da manhã andar pelo Thamel, considerado um bairro turístico de Kathmandu e que ficava relativamente próximo ao hotel, e na parte da tarde partiríamos para as compras para adquirir qualquer item que tivesse faltado, ou que não tivesse sido aprovado na inspeção do dia anterior.

Antes disso, porém, tivemos uma palestra dada pelo Manoel para nos contar um pouco da história do país, a relação da população com a religiosidade, e como alguns hábitos do dia a dia são afetados por isso.

Nós passamos alguns minutos ali ouvindo sobre o surgimento do Budismo, a influência do hinduísmo, sobre a chegada dos Mallas no vale de Kathmandu, o surgimento dos reinos de Kathmandu, Patan e Bhaktapur, a unificação na ascensão dos Shah, que posteriormente foram eclipsados pelos Rana, para em seguida retornarem ao poder.  Ouvimos um pouco também sobre as atribulações do recente passado político do país, que presenciou desde o assassinato de quase toda a família real por um de seus membros em 2001, passando pela destituição do rei em 2006. E quando a vida política parecia estar entrando nos eixos e o país parecia estabilizado, veio o terremoto de 2015, que além de muitos mortos deixou a já precária infraestrutura do país em estado ainda mais deplorável. Essa ferida recente, como o passeio que faríamos naquele dia mostraria, ainda está longe de cicatrizar.

Já quanto a religiosidade, esta está presente em cada particulazinha de poeira do Nepal. O país é de maioria Hindu, muito embora o Budismo esteja muito presente. E dessa fusão, acontecem algumas coisas curiosas.

Por exemplo, andando pelas ruas da cidade é possível ver diversas estátuas de divindades hindus. E pessoas com seu pontinho vermelho na testa. E sabe aquela história de que para os hindus vaca é um animal sagrado? Lá dá para ver vacas andando na rua (eu vi duas deitadas em plena avenida principal e os carros e pedestres simplesmente desviando, sem incomodar os animais). E no meio disso tudo, há também que se prestar atenção nos símbolos budistas sagrados: ao se passar por um deles (e eles estão em todo lugar – principalmente nas trilhas) tem que se tomar o cuidado de estar com o lado direito (considerado o “lado puro”) do corpo voltado para eles.

E no quesito “lado puro”, como a mão esquerda é usualmente associada a higiene pessoal, os nepaleses dão e recebem as coisas a outras pessoas com a mão direita. Então tivemos que fazer um treino mental de sempre que íamos estender a mão para receber ou entregar algo, a mão esquerda tinha que ir por baixo do cotovelo direito, e a mão direita ia estendida à frente.

Sobre a vestimenta, não tivemos grandes recomendações. Bastava ir na linha de evitar roupas muito justas, curtas ou decotadas. Isso para mim estava ok, dado que tinha levado uma mala com guarda-roupa estilo trekker, então basicamente as peças de roupa que tinha eram calças folgadas de trilha e camisetas.

A recomendação final, relacionada a cultura no Nepal, é de que lá não há o hábito de se cumprimentar tocando nas pessoas (nada de aperto de mão, abraços ou um ou dois beijinhos na bochecha, como fazemos por aqui). Por lá se utiliza a saudação “namastê” que significa: “O sagrado em mim saúda o sagrado em você”.  Mas ela também serve no lugar do “Bom dia”, “Boa tarde”, e “Boa noite” e é feita juntando as palmas das mãos na frente do peito e fazendo um leve meneio com a cabeça. Mas até mesmo a intensidade do meneio deve ser medida: você deve curvar mais a cabeça quanto maior for a autoridade da pessoa que está a sua frente. Assim, nada de meneio leve de cabeça na frente de um Lama, e nada de curvar profundamente a cabeça para o recepcionista do hotel.

Parece muita coisa?

Não tivemos muito tempo para processar a informação e o jeito seria ir praticando no caminho. Para nossa sorte, com essa cara e roupa de gringos, tínhamos um desconto.

Saímos do hotel de mochila nas costas (e, para garantir o completo visual “turistão”, tínhamos câmeras também). Nossa primeira parada foi numa casa de câmbio para trocarmos alguns dólares. A cotação estava na ordem de 1 dólar = 100 rúpias nepalesas, e isso garantiu a todo mundo a sensação de ser Silvio Santos por alguns instantes: bastava trocar 100 dólares para sair da casa de câmbio com tantas notas no bolso, que mal cabiam na carteira.

Carregar tantas notas assim estava longe de ser uma preocupação no quesito segurança. Apesar de ser um dos países mais pobres do mundo, não sabíamos de relatos de assalto nas ruas. E essa é uma outra influência da religião no país: como hindus e budistas acreditam no conceito de kharma, os atos dessa vida costumam ser medidos para evitar “problemas futuros” nas vidas que ainda estão por vir.

O Radisson Hotel onde estávamos hospedados fica numa ruazinha da capital que é razoavelmente tranquila. Quando saímos dessa ruazinha, viramos à esquerda para ir na direção do Thamel. Foi aí que o bicho pegou.

Trânsito. Poeira. Gente. Postes que eram verdadeiros ninhos de pássaro, exceto que não haviam pássaros nem ninhos, eram um emaranhado de fios que muitas vezes ficavam pendurados e tínhamos que desviar deles. Barulho. Motos. Tuk tuks. Nesse universo onde tudo era muito, só duas coisas faziam falta: calçadas e semáforos. Então o jeito muitas vezes era o grupo andar em fila indiana para minimizarmos a exposição ao tráfego e prestar muita atenção na hora de passar por cruzamentos.

Para mim, sair da ruazinha do hotel e ter a experiência de enfim caminhar pelas ruas de Kathmandu teve o efeito de um tapa na cara por diversas razões. Primeiro pelo caos instaurado ali. Segundo, porque era um caos sob o meu ponto de vista, mas tudo funcionava, o fluxo seguia, carros e pedestres se entendiam de alguma forma. Terceiro, pelo contexto cultural que era tão diferente e que dentro da bolha do Radisson ainda não havia se mostrado plenamente para a gente, exceto pela comida do restaurante, a decoração e os “namastê” que recebíamos ou dávamos.

O tempo todo desde que saímos da rua do Radisson estávamos margeando alguma rua principal (Lazimpat e depois a Kanti Path, segundo o Google Maps), até que chegamos ao cruzamento cuja referência principal é o Garden of Dreams (comentarei mais sobre esse lugar em outra postagem). Nós tínhamos que atravessar esse cruzamento para entrar no Thamel. Para ser sincera, vi que tinha um semáforo no cruzamento e um guarda de trânsito. Mas de alguma forma ambos não eram muito efetivos. As pessoas atravessavam em bandos e alguns carros e motos apenas reduziam a velocidade, sem parar completamente. Mas de alguma forma naquele emaranhado de gente e veículos, todos se saiam bem.

Naquele resto de manhã andamos pelo Thamel e tivemos a oportunidade de ver um pouquinho do universo que é Kathmandu. Passamos por estátuas de divindades hindus, entramos em um templo budista, vimos o comércio de artigos de esportes de montanha, de especiarias, e de todo tipo de traquitana falsificada. Vimos o trabalho de um tipo de profissional que parece saído de uma realidade paralela: um “afofador de recheio de colchão”, cuja tarefa é requisitada quando a lã que recheia os colchões já está muito compactada, e é preciso “afofá-la” novamente para que o colchão possa voltar a ficar macio.

Entramos em um tipo de condomínio onde costumam morar famílias nepalesas: vários apartamentos em volta de um pátio, e nesse pátio um monumento religioso. E vimos um curioso monumento ao “Deus da boca” onde várias moedas haviam sido pregadas ali, possivelmente por (futuros) pacientes de dentistas.

O encerramento da manhã se daria com um passeio emocionante de riquixá pelas ruas da cidade. Riquixá é uma espécie de triciclo, onde mal cabem dois passageiros na parte de trás e na frente vai o condutor pedalando quase morrendo pelo esforço.

O destino final desse passeio foi o Friends Restaurant, um dos lugares considerados ‘seguros’ para quem quisesse degustar uma boa carne bovina no almoço.

Tão ou mais curioso do que os nomes dos pratos do cardápio era a sessão de fotos que estava rolando ali dentro do restaurante em meio ao monte de gringos que estavam almoçando ali. Os fotografados eram um homem e uma mulher, e até hoje não entendi se o objetivo da sessão era promover algum trabalho deles, ou se era um álbum de um casal de noivos.

A nossa tarde foi toda dedicada às compras dos materiais e roupas que precisaríamos para a trilha. Começamos na loja da Mountain Hardwear. O Manoel e a Kathy nos mostraram os itens de que precisávamos e nos auxiliaram na indicação de marcas e quais “features” eram necessárias ou não. Particularmente AMO lojas de material esportivo, e foi superdivertido estar ali no meio de tantos equipamentos incríveis e ainda tendo a oportunidade de ouvir histórias das escaladas do Morgado.

Ficamos muito curiosos com os itens do vestuário de alta montanha que tinham ali, como os macacões de pluma de ganso e as botas usadas para escalar montanhas como o Everest e o Cho Oyu. É um tanto surreal imaginar o pesadelo logístico que está envolvido numa expedição de alta montanha, com o transporte dos itens necessários à sobrevivência nos acampamentos e principalmente necessários à escalada em si. Coisas simples como tomar água, escovar os dentes e fazer xixi viram grandes e perigosas aventuras quando se está em montanhas de 5, 6, 7 ou 8 mil metros de altitude. Sem contar o oxigênio que é escasso e que te faz sofrer para dar um mísero passo, como eu bem experimentaria na pele na subida a uma crista chamada Kala Patthar, em alguns dias. Nessas condições, quanto menos peso se carregar, melhor (ou menos pior, dependendo do seu ponto de vista). Mas só de imaginar que o par de botas que você vai calçar vai agregar uns 3kg ao seu peso (e isso é só uma peça do seu guarda-roupa de alta montanha), já me vejo ficando sem fôlego.

Ainda na loja, o Morgado aproveitou um bela foto panorâmica do campo base do Everest que mostra um bom pedaço da rota de escalada pelo colo sul no Nepal para nos contar a sua experiência. O vídeo é um tantinho longo, mas vale super a pena pela história.

Diversão à parte, paguei uma conta bem salgada na loja pra sair de lá com a seguinte lista de equipamentos:

  1. um par de meias para suportar a temperatura no dia que em que alcançássemos o acampamento base, que fica em cima do glaciar do Khumbu. Considerando que sinto bastante frio nas extremidades, me preocupava a temperatura dos meus pés nessas condições;
  2. um par de luvas liner e um par de luvas normais;
  3. um casaco e uma calça de fleece grosso (o conjunto fino eu já possuía);
  4. um anorak, casaco cuja função é proteger do vento e da chuva;
  5. um casaco de pluma de ganso, para suportar as baixas temperaturas que viriam quando chegássemos em locais com altitude mais elevada no trekking;
  6. um par de bastões de caminhada; e
  7. uma calça extra de trilha

Saí da loja e fui encontrar com parte do grupo que já havia ido para a The North Face logo ao lado. Por lá ainda acabei comprando um colete de pena de ganso para ajudar a esquentar e uma camiseta.

Na sequência, fui até a Shona’s Alpine que é uma lojinha muito mais simples conduzida por um casal (ele inglês e ela, a Shona, nepalesa). A lista de compras seguia:

  1. um par de luvas bem grossas para aguentar o frio no dia da subida ao Kala Patthar pois a expectativa era de alguns bons graus negativos por ali;
  2. pastilhas para tratar a água de beber e de escovar os dentes. Esse item é extremamente importante em um país onde as condições sanitárias são bem precárias e uma diarreia ou distúrbio gastrointestinal pode arruinar sua viagem;
  3. uma garrafa extra para armazenar água. Eu já possuía uma, mas o plano era levar duas pois, enquanto eu estivesse bebendo uma garrafa, a outra estaria com água em tratamento (a pastilha precisa de mais ou menos uma hora para tratar um litro de água);
  4. uma pee bottle para as madrugadas frias onde batesse aquela vontade de fazer xixi e o frio desincentivasse a ida ao banheiro (que, via de regra, estava sempre fora do quarto dos lodges); e
  5. uma duffle bag, que é um modelo de mala completamente mole, sem armações ou estruturas. Nosso guia havia contratado um grupo de carregadores que carregariam o grosso de nossa bagagem (limitado a 15 quilos de bagagem para cada pessoa e cada carregador levaria bagagem de duas pessoas). Esse tipo de mala permitia que eles a acomodassem melhor durante o transporte, além de não ter o peso extra das armações ou estruturas.

Ainda na Shona’s Alpine aluguei aquele que seria meu companheiro de todas as noites desde o primeiro dia de trekking: um saco de dormir. Embora ele estivesse nitidamente higienizado, garanti na Shona’s uma liner para usar por dentro do saco, just in case.

A essa altura do campeonato eu já estava bem carregada de compras, e parte do grupo já havia dispersado e ido para o hotel ou para outro destino, enquanto outra parte ainda voltaria (ou iria pela primeira vez) na The North Face. Eu resolvi voltar para o hotel. Peguei as instruções com alguém do grupo e saí da loja rumo ao Radisson sozinha. Já era o comecinho da noite e as ruas estavam parcialmente escuras.

Por um breve lapso de tempo fiquei um tantinho assustada. Eu era uma estrangeira, sozinha, cheia de bolsas de compras. Foi difícil evitar aquele medo que acompanhou o pensamento de que se eu estivesse no Rio de Janeiro em uma situação similar eu estaria com medo de ser assaltada. Para piorar minha situação, no caminho de ida eu tinha vindo tão distraída com tudo o que estava acontecendo a minha volta que não havia prestado muita atenção ao caminho em si.

Respirei fundo. Resolvi confiar no meu “pouco” senso de orientação e nos raros marcos de que tinha lembrança do caminho.

Saindo da Shona’s rumei para a esquerda e na esquina virei à direita. Ao final da rua, estava do lado do Garden of Dreams e do cruzamento onde havia feito a filmagem da travessia de manhã. Marco um: checked. Mas havia um problema: o fluxo de carros continuava intenso, não havia mais guarda de trânsito e ninguém pra atravessar a rua junto. Esperei, esperei, esperei e com a graça do Universo dois nepaleses pararam do meu lado para cruzar a rua também. Quando eles se enfiaram no meio dos carros eu fui junto e cheguei ao outro lado da rua.

Ufa.

Agora que atravessei, preciso ir para a esquerda.

Caminha, caminha, caminha e de repente estava na calçada ao lado de um longo muro que cercava uma construção onde, de manhã, eu tinha me dado conta de que nas árvores haviam morcegos enormes, que me fizeram lembrar das raposas voadoras australianas. Marco dois: checked.

Na continuidade dessa calçada, a rua dava uma leve guinada para a direita e um pouco mais à frente eu passei por um Standard Chartered Bank. Depois, pela embaixada da França. E com um suspiro de alívio identifiquei a ruazinha do hotel.

Chegando ao Radisson fui para o quarto e aproveitando que a Rita ainda não havia voltado, me dei de presente um longo banho quente. Esse banho, aliás, me ajudou a responder uma dúvida que carregava desde a manhã: porque tantos nepaleses usavam máscaras no rosto? Durante o banho, me dei conta de que o que eu julgava ser um bronzeado simpático que havia adquirido caminhando ao longo do dia embaixo de sol nada mais era do que sujeira da poeira da cidade. Eu tinha poeira também dentro do nariz, das orelhas, e no dia seguinte de manhã descobri que até aquelas remelinhas do olho estavam marrons da poeira que meus olhos haviam absorvido.

Desci para jantar no restaurante do hotel com parte do grupo e na volta ao quarto já aproveitei para arrumar minha duffle bag. Separei na mala que havia levado para o Nepal todas as coisas de que não precisaria durante o trekking, pois essa mala ficaria guardada no Radisson até o nosso retorno e coloquei na duffle todos os itens novos que havia comprado, além do que já tinha trazido do Brasil para o trekking. A arrumação da duffle teve um desafio adicional: no voo de Kathmandu para Lukla a aeronave era muito pequena e apertada, com pouco espaço para bagagem de mão. Então fomos aconselhados pelo guia a colocar nossa mochila de trekking – que eu planejava levar como bagagem de mão – dentro da duffle. Testei, vi que cabia, e fui dormir. Amanhã teríamos o dia todo dedicado a conhecer um pouco mais da cidade e eu precisava descansar.

Ali, deitada na cama e vendo a silhueta da duffle já arrumada, a ficha caiu. Eu estava vivendo, enfim, aquela viagem tão desejada.

Abaixo separei alguns links que podem ser interessantes caso esteja buscando mais informações:

  1. O Lonely Planet fez um resuminho bem bacana sobre a história do Nepal;
  2. Mais informação sobre a razão pela qual a mão esquerda é a mão impura;
  3. Uma matéria interessante comparando o equipamento utilizado pelo Edmund Hillary e o Tenzing Norgay com o equipamento utilizado pelos escaladores atuais.

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