Um encontro com a morte

 

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A stupa Boudhanath. Foto: Paula Valenzuela

Sábado, 22 de abril de 2017. Amanheceu chovendo muito em Kathmandu. Mas pelos comentários gerais, aparentemente chover nessa época do ano era algo bem atípico. Fomos tomar café e eu particularmente estava torcendo para que a chuva desse uma trégua. Não me animava muito pensar em passar o dia andando por uma cidade que era só poeira na véspera, sabendo que aquelas ruas cobertas de pó potencialmente virariam um mar de lama sob chuva.

Depois do café, um ônibus veio nos buscar no hotel. O primeiro destino do dia era um templo hindu dedicado à Pashupati, uma das manifestações de Shiva. Assim, encarando o trânsito da cidade, fomos até o Templo de Pashupatinath, o maior da capital.

Quando o ônibus estacionou, teve início o primeiro fato curioso do dia: fomos cercados por vendedores, mesmo com o ônibus ainda parado e de portas fechadas. Começava ali uma disputa para saber quem mostrava mais alto e tinha o grito mais potente para anunciar o produto que estava vendendo. Pulseiras, brincos, colares, singing bowls, rodas de oração e uma infinidade de outras coisas que eu mal conseguia enxergar naquela confusão.

Permanecemos por alguns minutos ali, com alguns de nós olhando com mais interesse para os itens, até que nos foi dado sinal verde pra descer do ônibus. Não preciso nem dizer que agora que não havia uma lataria de metal nos separando dos vendedores, o “assédio” foi mais intenso. Adotei a estratégia que costumo adotar nessas ocasiões: cruzei os braços, adotei uma expressão de poucos amigos, e fiquei olhando para o longe. Deu certo, até certo ponto.

Depois que pagamos por nossas entradas, seguimos caminhando por uma rua com uma leve inclinação e ao mesmo tempo em que íamos passando por lojinhas que vendiam todo o tipo de coisas (de objetos religiosos a fósseis – que também são considerados uma manifestação de algum deus hindu) éramos seguidos por uma legião de vendedores.

Um deles, mais persistente, veio oferecendo uma rodinha de oração feita, segundo ele, com ossos de Yak. Rodas de oração são cilindros onde dentro estão mantras escritos em um papel enrolado. Quando se gira o cilindro, o movimento leva o mantra pelos ares, espalhando uma energia boa. As rodas mais comuns são encontradas nos monastérios budistas, e estão fixadas nas paredes onde o transeunte, sempre com o lado direito do corpo voltada para elas, gira-as. Ao longo da trilha também encontraríamos com diversas dessas rodas de oração. No entanto, a rodinha oferecida pelo vendedor era uma versão “portátil”: o cilindro – que tinha um pesinho pendurado – vinha acoplado a um bastão, então era só segurar o bastão com a mão e fazer movimentos circulares com ele para o pesinho e a força centrífuga fazerem a rodinha girar.

Vendedor dispensado (pelo menos eu acreditava) chegamos a um ponto do templo onde havia um rio passando: era o Rio Bagmati, sagrado para os hindus. Nós estávamos na margem esquerda, acessível aos não nascidos hindus. Ali, próximo a nós, um casal consultava uma espécie de sacerdote hindu, que fazia alguns movimentos com as mãos e, vez ou outra, jogava alguns grãos para o alto. Ainda nessa margem era impressionante a quantidade de macacos (acho que Rhesus) que rondavam por ali. Alguns, mais ousados, se aproximavam das pessoas. Outros, mais tímidos, apenas observavam. Ah! E sabe o vendedor insistente? Ele continuava por ali…

Mas mesmo com todo esse movimento na margem esquerda, foi a margem direita (acessível apenas aos nascidos hindus) que chamou nossa atenção: iniciavam-se os preparativos para uma cremação.

A relação dos hindus com a morte, pelo o que pude perceber, é em muitos níveis diferente da que a maioria de nós, ocidentais, ali presentes temos. Os hindus crêem em reencarnação. A vida é parte de um ciclo de renascimento, morte e renascimento. Assim, a morte não é um “adeus”, estando mais para um “até logo”. Isso não quer dizer que eles não sintam a morte de um ente querido, mas a crença na reencarnação é algo tão forte que, na minha percepção, o luto não é tão doloroso como talvez seja para nós.

É justamente a crença na reencarnação que motiva a cremação: por meio desse processo a alma se desprende do corpo para que ela encontre uma nova “casa”, que pode até vir a ser um corpo de animal, a depender do que o sujeito fez na vida que acaba de se encerrar. E, sendo esse processo algo tão especial, nada mais lógico do que fazê-lo às margens de um rio sagrado. Sendo assim, ao término da cremação, os eventuais restos do morto são jogados no rio.

Particularmente fiquei um tanto em dúvida se a cremação que estava sendo preparada iria, de fato, ocorrer ali na nossa frente, com tantos turistas vendo e com câmeras nas mãos. Mas isso era mais um reflexo da minha visão sobre a morte. Então, para minimizar demais julgamentos meus, resolvi me dissociar da situação e apenas assistir e documentar o que estava acontecendo. Sim, tirei fotos. Sim, tirei fotos usando o zoom máximo da minha lente. Sim, houve desconforto por parte de alguns membros do nosso grupo e de outros turistas que estavam por ali quanto a estarmos vendo aquela cena e ainda registrando. Mas na outra margem do rio não vi ninguém dar bola para gente, nem focar em outra coisa que não cumprir os passos da cerimônia e dar ao seu ente querido o melhor ritual de passagem possível.

O que assistimos do ritual se iniciou com uma espécie de procissão onde o morto, envolto em panos branco e laranja, foi trazido até um dos ghats na margem do Rio ao som de batidas de tambor e de um outro instrumento que me lembrou pratos. As batidas eram ritmadas e aquele som hipnótico não saiu da minha cabeça até hoje.

O corpo foi colocado sobre uma pilha de madeira que nada mais é do que a pira onde ele será queimado. Talvez por estar dissociada, não consegui absorver tudo o que o Morgado nos explicou sobre o ritual de cremação, mas lembro dele ter dito que esse trecho do ritual é masculino. É conduzido por um sacerdote acompanhado do filho mais velho do morto (ou outro homem, caso o filho mais velho não esteja “disponível”). Nessa cremação em particular, observamos que foi jogada palha molhada sobre o corpo (o intuito disso é garantir que o fogo queimará todo o cadáver). Vimos também uma espécie de pó ser jogada sobre o corpo. Os homens deram três voltas no cadáver em sentido horário e, aquele que suponho que seja o filho mais velho, agarrou uma tocha e deu início à queima pelo lado da cabeça do defunto.

Uma vez que o fogo começou a consumir, de fato, o cadáver, observamos que a família foi embora. Pelo o que soube, após a queima do corpo há uma pessoa que fica responsável por recolher as cinzas e jogá-las no rio.

Abaixo, algumas das fotos que tirei.

Não sei bem o que dizer sobre o que senti ao ver tudo aquilo que se passou ali na outra margem. Não foi uma questão de ter estômago. Sinceramente, ver o corpo queimar não foi algo exatamente chocante para mim. Talvez o sentimento tivesse sido mais de confusão mesmo logo no começo, quando fiquei dividida entre estar ou não sendo intrusiva ao ficar ali parada vendo tudo.

Por outro lado, enquanto ainda observávamos o corpo ser consumido pelo fogo, o vendedor insistente retomou sua demonstração da rodinha de oração.

O Morgado nos convidou a seguir andando para ver outras partes do templo, e foi aí que chegamos a um ponto onde se via uma espécie de escadaria na outra margem, com alguns corpos sendo cuidados junto ao rio. Aí, na verdade, era onde se iniciava o ritual de cremação, com a família lavando o corpo (nessa parte as mulheres podem participar) e fazendo oferendas de leite. Ali pude observar demonstrações mais doloridas do luto dos familiares. E uma imagem me marcou: através da lente da minha câmera pude observar os detalhes do rosto de uma pessoa que, já envolta em seus panos mortuários, tinha o rosto voltado para a margem onde estávamos. Olhos fechados, boca aberta e aquela expressão de quem apenas dormia.

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Na parte de baixo, à direita: mais um cadáver sendo preparado para a cremação. Ainda na direita, mas acima, a entrada do templo. Foto: Paula Valenzuela

Olhando para o alto, pudemos ver o pagode onde fica o templo principal e que é inacessível aos não hindus. Me dei conta de que a quantidade de pessoas ali era enorme e elas se espalhavam por todos os lados, inclusive por locais que eu julgava serem telhados, não sendo possível distinguir muito bem quem estava ali por conta das cremações, ou quem estava ali por qualquer outra razão.

Não demoramos muito e seguimos subindo pelos degraus que estavam atrás de nós. Pudemos fotografar um pouco os vários “templinhos” dedicados a Shiva, cada um com seu Shivalingam (falo de Shiva) dentro. Os Shivalingam, longe de terem uma conotação puramente sexual, estão mais ligados à fertilidade, a criação e à junção entre céu e terra. Parar na frente de um templinho e se abaixar um pouquinho para poder ver, de frente, um Shivalingam que estava ali dentro descortinava uma paisagem interessante: ao fundo, em diversos planos paralelos, era possível ver os diversos Shivalingams dos outros templinhos que foram construídos ao lado.

Tirei algumas fotos, agora fazendo força pra me esquivar do vendedor chato, e segui o grupo. Em algumas paredes, já próximo da saída do complexo de templos, havia algumas pinturas retratando algumas imagens das divindades hindus e paramos ali por alguns momentos para escutar algumas explicações do Morgado.

Um pouco antes de sairmos do templo, no entanto, fomos visitar um Sadhu, ou homem santo. Os Sadhus podem ser encontrados aos montes em Pashupatinah. Normalmente eles chamam a atenção por estarem cobertos com pó ou tintas coloridas (branca, vermelha e/ou laranja). O rosto também está pintado e os cabelos compridos. Por serem muito chamativos, acabam atraindo os turistas que querem posar para fotos ao lado deles. Eles não se incomodam, mas a contrapartida deve vir em forma de gorjeta. Isso porque os Sadhus são homens que, em busca da iluminação espiritual, abrem mão de todos seus bens, seus hábitos e vida passada e sobrevivem apenas com o que lhes é dado.

O Sadhu que encontramos me pareceu tímido até, quando comparado com outros que vimos pelo caminho. Tinha um olhar meio desconfiado e com a nossa chegada, a pedido de um de nossos sherpas, fez algumas posições de ioga (que eu particularmente só conseguiria reproduzir se me quebrassem as articulações). Tirei algumas fotos e esperei o resto do grupo fazer o mesmo (além de tirarem fotos com ele). Demos nossa gorjeta, e seguimos para fora do templo.

Era chegada a hora de entrar no ônibus para irmos para nossa segunda parada do dia: a stupa Boudhanath. Mas, entre a gente e o ônibus, haviam os vendedores.

Depois de muito evitar, acabei me rendendo e comprando uma rodinha de oração e um singing bowl. Alguns de nós compraram algumas (várias) outras coisas a mais. Compras feitas, grupo completo no ônibus, era hora de irmos para a Boudhanath.

Se na parte da manhã havíamos estado em um templo hindu, a parte da tarde nos reservaria um mergulho em um lugar sagrado para os budistas.

Stupa é uma construção sagrada, onde no seu interior se guardam relíquias e ensinamentos sagrados para os budistas. A de Boudhanath é uma das maiores do mundo e a maior do Nepal. No seu entorno, há todo um comércio vinculado com o budismo: lojas que vendem incensos, pequenas imagens de buda, bandeiras de oração, singing bowls, tankas (pinturas cuja precisão e fineza do traço são assombrosas, e que representam deuses, deusas e mandalas) e katas (lenços que são abençoados pelos lamas e que servem como oferendas para demonstrar respeito e gratidão). No entorno também é possível comer em alguns dos restaurantes, ou entrar em pequenas gompas budistas. Mas o grande atrativo é, de fato, a stupa, que domina toda a paisagem. Para os que passam no seu entorno, é possível rodar (com a mão direita!) uma das muitas rodas de oração ali colocadas.

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O entorno da stupa. Foto: Paula Valenzuela

O curioso de nossa chegada ao local é que o restaurante onde iríamos almoçar estava próximo ao portão por onde entramos. Entretanto, para chegar nele, teríamos que virar à esquerda. E isso estava fora de cogitação ali, em um lugar tão sagrado. Assim, viramos à direita e demos a volta em praticamente toda a stupa, para podermos, enfim, chegar ao local desejado.

O restaurante ficava no primeiro piso de uma construção e era um restaurante vegetariano. O lugar era pequeno e tivemos que nos apertar um bocadinho e esperar um outro tanto até que os donos conseguissem se organizar para nos atender. Isso não foi um problema, já que estávamos todos entretidos com as novidades no cardápio e no entorno. Eu pedi um “hambúrguer” vegetariano, e enquanto aguardava o pedido ficar pronto, desci para ir na loja ao lado e comprar umas katas (que seriam abençoadas por um lama que encontraríamos na volta do campo base) e umas bandeiras de oração (o intuito era deixá-las no campo base, como fazem muitos dos visitantes).

O almoço foi delicioso e sequer senti falta da carne no “hambúrguer”. Depois do almoço, nosso tour pela stupa seguiu. Entramos em uma loja que vendia miniaturas de Buda e tivemos uma verdadeira palestra sobre como elas são confeccionadas, e como elas podem ser levadas a um lama que as abençoa e coloca orações dentro dela. O preço, no entanto, me pareceu um tanto salgado.

Na sequência fomos a um ateliê onde eram produzidos tankas. Pudemos também ouvir explicações sobre o tema e pudemos ver algumas pessoas trabalhando nas cópias de desenhos. Se bem entendi, o grande lance para quem está aprendendo os tankas é o quão perfeita é a cópia que eles conseguem reproduzir. Uma cópia perfeita é muito mais valiosa do que uma criação original. Vendo aqueles verdadeiros artistas trabalhando já fiquei encantada com o desenho deles. Aí descobri que eles eram “apenas” alunos, e que naquele local também estavam expostos trabalhos de artistas mais “graduados” e de verdadeiros mestres. Achei que não faria tanta diferença assim, já que o trabalho dos alunos era incrível. Mas estava enganada. É possível sim fazer um desenho ainda mais perfeito. A quantidade de detalhes que constam das tankas é absurdamente impressionante. Até difícil capturar tudo com o olhar. Alguns desenhos são maiores, outros menores, outros têm ouro na pintura e outros não. Claro, isso tudo influencia no preço final cobrado pelas tankas.

Comprei uma tanka da roda da vida de tamanho pequeno, feita por um artista de “nível intermediário”, e saí de lá me sentindo a pessoa mais sortuda do mundo por ter a oportunidade de carregar uma pintura tão bonita.

Nos últimos minutos que tínhamos para o passeio ainda fiz o Morgado dar voltas comigo em torno da stupa (sempre girando em sentido horário!) atrás de um incenso que eu havia sentido o cheiro e havia ficado encantada: o Red Crystal. Esse incenso, segundo soube, é feito totalmente de forma artesanal, e apenas com ervas (sem nenhum outro tipo de aditivo, como a cânfora). Depois de muito procurar, encontramos uma loja e comprei duas caixinhas. Meu intuito era dar de presente, mas fiquei tão encantada com o cheiro dele que acabei ficando com as caixinhas pra mim quando voltei ao Brasil.

Já era final de tarde quando encerramos o passeio e começamos os preparativos para voltar ao hotel. Enquanto esperávamos o ônibus, que nos levaria ao hotel, chegar outro temporal desabou sobre Katmandu. Como não tínhamos levado guarda-chuva, só não ficamos encharcados porque disputávamos cada centímetro de marquise disponível na saída da stupa.

Já dentro do ônibus, no caminho de volta ao hotel, foi possível ver o mar de lama que havia tomado conta de Katmandu. As pessoas, no entanto, caminhavam por ali com naturalidade. Esse é um daqueles momentos onde é quase impossível não comparar a sua realidade (Rio de Janeiro, Brasil) com a realidade dali. Por todo lugar onde o ônibus se deslocava, um mar de lama corria com força.

Apesar da lama chegamos ao hotel e, uma vez lá, as prioridades estavam estabelecidas: terminar de arrumar a mala que iria para o trekking, arrumar a mala que ficaria no hotel com todos os itens que não seriam necessários na caminhada, tomar banho e jantar (para mim, as prioridades estavam nessa ordem). Como eu já tinha boa parte dos itens separados, arrumar essas malas foi fácil. Tomei banho e desci para o jantar. Dividi a mesa com o trio carioca que por lá estava (Eliane, Rita e Vanessa). Foi um jantar divertido e nos demos ao luxo de tomar um vinho. Seria nossa despedida de Katmandu e o início de um período de abstinência de carne (a de vaca não era consumida na trilha e a de Yak não era exatamente higiênica, o que era um convite para não arriscarmos provar) e de álcool (o álcool desidrata o organismo, assim como a altitude, então era preciso evitá-lo para minimizar as chances de ter um mal de altitude).

Apesar de divertido, o jantar foi rápido (ou o mais rápido que a demora na preparação dos pratos permitiu). Tínhamos que acordar cedo no dia seguinte, pois partiríamos às 04:30h.

A ansiedade estava em níveis elevadíssimos quando deitei. Queria começar logo a caminhada. Colocar o pé na estrada e ir provando tudo o que estivesse à minha espera. A cabeça voava para longe, mais exatamente pra um certo acampamento base aos pés do Everest.

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